Uma ideia monstruosa. Foi desta maneira que uma pessoa me respondeu, à possibilidade de se inocular toda a população mundial contra a nicotina. Eu repliquei, questionando se a classificação se mantinha se estivéssemos a falar da erradicação de vários agentes causadores de doenças, como a tuberculose. A resposta não foi imediata, nem directa.
Vamos imaginar um cenário hipotético, onde toda a população mundial tinha sido vacinada. O consumo de tabaco tinha uma queda vertiginosa, as grandes tabaqueiras iam à falência, e progressivamente o número de doenças associadas ao tabaco diminuíam. Aparentemente temos um cenário positivo. As pessoas vivem mais, com maior qualidade de vida, com a excepção de algum desemprego devido à falência de algumas empresas. Porém, a simples ideia de uma inoculação aterroriza uma grande parte das pessoas. Porquê? Simplesmente, porque acham que a vacinação uma acção coerciva, contra as suas vontades pessoais, contra as suas liberdades. Um argumento completamente legítimo. Vamos agora imaginar que era opinião unânime, que a vacinação era facultativa para os adultos, mas obrigatória para todas as crianças. Num período de uma, duas gerações, a totalidade da população estava vacinada. Os homens e mulheres daquela sociedade, nunca sentiriam o prazer de um cigarro. A história do tabaco resumia-se a pessoas da geração dos seus pais e avós, que tinham visto a fumar. Avançando mais algumas gerações, o conceito de cigarro passava a ter um sentido estritamente histórico. Acumulavam-se livros a explicar como surgiu, a sua evolução, a maneira de o comercializar, etc. Podia até existir museus, onde possuiam em exibição os mais famosos cigarros. Os escritos à época relatariam as inúmeras desvantagens do tabaco no organismo humano, e as pessoas do tempo provavelmente não conseguiriam entender a razão pela qual milhares de pessoas teriam consumido tal substância, que na maior parte das vezes só tinha trazido adversidades. Nestas circunstâncias, considerariam eles que as gerações passadas tinham deliberadamente restringido as suas liberdades? Será que ansiavam por uma lufada de fumo associado a algum prazer? É difícil de prever, mas em princípio não. Será que podemos considerar que esta sociedade possui menos liberdade de escolha que as gerações passadas? Não. Não podemos dizê-lo, porque simplesmente são sociedades diferentes, são realidades diferentes. Será que as pessoas na Idade Média tinham maior liberdade de escolha, pelo facto de terem utensílios que entretanto deixaram de existir? Simplesmente não podemos fazer essa comparação.
Mas voltemos ao problema inicial. A passagem de uma sociedade como a nossa, para a sociedade do futuro encontra alguns entraves, nomeadamente no que toca às crianças. Terá a sociedade direito a impor a sua vontade às crianças? Por outras palavras, embora como crianças não tenham as capacidades para decidirem por si próprias, é legítimo apropriar-se desse lapso de tempo para se decidir sobre elas? Não parece correcto. Poderíamos então aguardar, e dar o poder da decisão à criança quando esta tivesse capaz de escolher. Mesmo assim, levanta-se a questão de saber em que circunstância é que a criança está habilitada a efectuar a decisão. Deixemos este problema para mais tarde. Vamos partir do princípio que sabemos em que circunstâncias é que a criança pode escolher. Aparentemente, encontrámos uma solução que parece mais ao menos justa, e que não vai contra a liberdade de ninguém.
Imaginemos agora que nessa mesma sociedade, é descoberta uma estirpe de um vírus que causa o escurecimento da pele e contribui para o aparecimento de cancro na pele, sendo transmitido por via aérea. Iniciavam-se investigações e é descoberta uma vacina. O que fazer com esta vacina? Distribui-la por toda a população? Em princípio, a maioria das pessoas vão querer ser vacinadas. Mas vamos imaginar que uma parte da população recusa-se a ser vacinada, pois gostaram da sua nova cor de pele. Embora possa ter outros efeitos, este parece ser mais importante, e recusam-se terminantemente a serem inoculados com a vacina. O que fazer? Ignorar as opções dessas pessoas e erradicar o vírus de modo a não permitir que este evolua para uma forma mais perigosa? Ou respeitar a liberdade dessas pessoas, mas impondo um risco à liberdade das outras? Poder-se-ia discutir em separar as pessoas em zonas diferentes, mas mesmo assim o risco mantinha-se. Esta situação parece ser um beco sem saída. As liberdades colidem, e não parece existir uma solução viável. Qualquer que seja a solução, envolverá necessariamente o sacrifício de algumas liberdades, dada a inexistência de outras alternativas. A questão que se coloca é de saber quais as liberdades que terão de ser sacrificadas. Entre pessoas descontentes com a tonalidade da sua pele e pessoas que correm o risco de serem contaminadas com um vírus letal, a minha escolha terá que recair sobre a primeira. Não existe liberdade que sobreviva num cenário equivalente ao da segunda hipótese.
Qual é a semelhança entre esta história fictícia, e uma possível história de vacinação contra a nicotina? À primeira vista pouco, mas existem diferenças. São essas poucas diferenças que vão fazer a diferença para se chegar a uma conclusão. Embora o tabaco constitua uma ofensa à liberdade dos que não fumam, não se trata de algo epidemiológico. Da mesma forma, não estamos a lidar com uma ameaça que se transmita pessoa a pessoa, em qualquer instante. O fumador tem a possibilidade que o fumo do seu tabaco não viole a liberdade da pessoa mais próxima, o que não acontecia na história fictícia. Este é um factor decisivo. O fumador tem a possibilidade de usufruir da sua liberdade, desde que não atente contra a do próximo. Dada esta particularidade, não se justifica a inoculação obrigatória de toda a população, desde que se respeite a premissa anterior. A possibilidade de se vacinar passaria a ser uma opção de cada pessoa.
Mas a discussão não está completamente encerrada. Voltemos ao problema das crianças. No caso do tabaco, e pela argumentação que referi no parágrafo acima, não parece haver razão para que não se possibilite a estas, quando tiverem as capacidades para tal, a opção de escolherem a melhor solução para elas. Porém, é um facto que é nas crianças que existe a maior administração de vacinas. Não será isso uma violação de liberdade? Sim, pode-se dizer que sim. Porém, estas vacinas são uma garantia de preservação da criança (enquanto propriedade se quiserem), que a sociedade confere, de modo a que um dia ela possa usufruir dessa liberdade que foi “violada”. Obviamente não é possível utilizar este argumento no caso do tabaco.
Resta apenas uma questão: Como determinar/decidir quando a criança está capaz de tomar essa decisão? Um critério de idade? Outro? Este problema já não o abordo, dada a extensão do post. Fica para uma próxima vez.
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